Os ratos.
Há um livro clássico, excepcional, do escritor gaúcho Dyonélio Machado, chamado Os Ratos, publicado lá por 1935, cujo enredo eletrizantemente simples (o livro se passa todo em 24 horas), é mais ou menos este:
Sem dinheiro, um homem – Naziazeno, acreditem, era seu nome – debate-se loucamente atrás de recursos para pagar o leiteiro (ora, vejam, o leiteiro!).
Sua batalha é desesperadora, comovente, angustiante e a necessidade do leite, candente.
É a alimentação básica de sua família que está em jogo:
O leite.
Leite de múltiplos usos e funções.
Leite tão querido e maternal.
Como ficar diariamente sem ele?
Luta, pensa, se consome em esforços até que obtém o dinheiro.
Coloca-o então sobre a mesa, num lugar fácil de ser visto pelo leiteiro.
Mas o drama segue:
Sonha que ratos, à noite, roem tudo. As cédulas, o esforço, tudo.
E que ele terá de refazer sua trajetória oprimida, de novo e para sempre.
(Sísifo?)
Me lembrei disto pensando num trabalho que conquistamos e realizamos – bem lá no início da agência – que foi a reformulação completa de embalagens de uma extensíssima linha de produtos para uma empresa de cosméticos e produtos de higiene e limpeza de São Paulo.
Chegamos ao job através de um amigo de um amigo de um amigo (aquelas coisas…), distribuidor comercial da empresa-cliente em Porto Alegre, que simplesmente detestava as embalagens e assim, meio que intuitivamente, sugeriu a aproximação nossa com a fabricante.
Ligação pra cá, manda portfólio pra lá, muitas incertezas de lá, muito interesse de cá, eis que proativamente enviamos alguns estudos preliminares por avião (foram muito elogiados) chegando até a negociação de preços.
Foi tensa & intensa (sempre é), mas, enfim, acertamos o valor.
O job era nosso!
E que job!!!
Era o trabalho do semestre, quem sabe do ano. Eram muitas embalagens, muitas mesmo.
Eram umas 100 embalagens.
Talvez mais.
Revisão visual completa.
Criar unidade de marca, mas gerar personalidade para cada linha.
Trabalhão. Trabalhão show. Tudo em uma semana.
Vou repetir: Tudo em uma semana!
A preocupação – e consequente reclamação – era grande, especialmente de nosso Diretor de Arte da época que balançava insistentemente a cabeça e dizia:
“Não vai dar. É muita coisa… Não vai dar. É muita coisa…”
Ele não deixava de ter razão: Lembremos que estamos ainda na década de 80, com todos os leiautes sendo feitos à mão, artesanalmente, cada um quase uma obra de arte…
Não há computadores.
Não há softwares de design.
Não há impressoras coloridas.
Somente ilustrações manuais, pinturas, desenhos de letras, aplicações de Letraset, recortes, colagens, montagens, fazendo a gente lembrar que todo aquele trabalhão passado lá no Jardim de Infância, enfim, se justificava.
Passo número um: Para garantir que tudo desse certo, fui pessoalmente às compras. Destino: Casa do Desenho, uma loja especializada em materiais de artes, localizada no centro de Porto Alegre.
Fui lá ampliar o estoque de tinta guache Talens, uma das mais famosas e caras do mundo, além de comprar uma diversidade absurda de colas e de papeis especiais, tudo para que o batalhão de designers que contratei para nos ajudar na empreitada tivessem materiais adequados para produzir uma coleção de leiautes de alto nível para as múltiplas diferentes linhas de cosméticos.
Eu tive de ir lá pessoalmente, para implorar o aumento do limite de crédito e o parcelamento do pagamento dos materiais.
Tive de assinar umas promissórias, mas consegui.
Era material pra cacete.
Passo número dois: Começar a trabalhar.
E trabalhamos bem.
Bah, como trabalhamos bem.
A agência, pequenininha na época, já estava em seu segundo endereço, fruto de uma evolução lenta e cadenciada, toda baseada em clientes pequenininhos e inconstantes, de jobs igualmente pequenininhos e inconstantes, mas sempre encarados por nós sempre como se de cada um deles dependesse nosso futuro.
Estávamos certos: De fato, dependia.
Era uma casa familiar adaptada caprichosamente para nossas necessidades, cujo porão foi repaginado para sediar nosso departamento de criação, de produção e o estúdio de finalização.
Neste trabalho, havia um grupo de 6 ou 7 profissionais especialmente dedicados à tarefa insana de produzir industrialmente embalagens, estudando referências, experimentando e repensando a utilização dos tubos plásticos enviados pelo cliente, abrindo as linhas criativas, realizando a aprovação comigo, desenvolvendo leiautes, enfim…
Era uma verdadeira linha de montagem intelectual que bombava.
Todo mundo lá, regidos pela mão criativa e segura de nosso Diretor de Arte, todos sintonizados, engajados.
Era lindo de se ver.
Conseguimos.
Freneticamente envolvidos na tarefa, conseguimos.
Meu papel ficou restrito (sic!) à liderança do processo, pois mesmo sem as minhas parcas habilidades de redator serem necessárias para o trabalho, conduzi o time todo o tempo, para que, num domingo, véspera da data aprazada para o envio do material por avião para são Paulo, tudo estivesse pronto.
Estive todo o tempo com eles.
Virei as noites com eles.
Comi as mesmas pizzas e bebemos as mesmas Cocas.
Mornas.
Sempre achei – e continuo achando – que devo estar junto com o pessoal dando o mesmo duro que eles, até mais.
Talvez tenha exagerado nisso, mas foi o que sempre fiz.
Voltemos às embalagens e ao desafio: Eis que a segunda-feira fatídica de entrega se aproximava.
Mas, antes dela, tínhamos o domingo para terminar tudo.
Na verdade, concluímos o trabalho na madrugada de sábado, deixando somente o domingão para as análises e retoques finais.
Que orgulho.
Tudo certo.
Show.
Baita trabalho.
Fomos para casa, com a endorfina circulando em nossas veias, demolidos, com forças somente para assistir ao Fantástico com a família e tentar desligar um pouco.
Deixamos os trabalhos prontos, espalhados sobre as mesas, secando.
Bem… provavelmente o cheirinho e o gosto de guache novo – ainda mais gostinho de importado – atraíram os ratos (seriam os do Naziazeno?) que, sim, destruíram o trabalho.
Aqueles desgraçados comeram nossos leiautes…
Ratos filhos da puta!
Comeram nosso trabalho!
Não totalmente, na verdade, só o suficiente para entrarmos em pânico.
Na segunda-feira, me deparei, então, com dois desafios:
1. Não avisar nada para o nosso Diretor de Arte (curtindo um dia de merecida folga). Ele, que havia trabalhado como um cavalo no projeto, certamentesurtaria ao saber da notícia, entraria em colapso, em profunda depressão (com razão) e provavelmente tentaria o suicídio…
(Exagero, exagero)
2. Recuperar os leiautes.
E isso começou 20 segundos depois de nos recuperarmos do golpe.
O pessoal se atirou à tarefa de refação do trabalho com uma energia insana, motivados por nada mais que nosso compromisso profissional assumido.
Pinta pra cá, cola pra lá…
Repinta para cá, recola para lá…
Eu, por ali, recolhendo os leiautes, as pranchas, as lâminas, sem demonstrar a ansiedade que me corroía.
8 da noite de segunda-feira:
Tudo pronto!
Mas, sinceramente, olhando os leiautes não consigo esconder uma ligeira, mas marcante, decepção.
O trabalho caíra muito em qualidade.
Era inegável.
E agora?
Vendo minhas dúvidas vindas deste desapontamento – ao longo de minha vida profissional nunca consegui escondê-las quando o trabalho a ser entregue não é tecnicamente contundente – os quatro caras remanescentes do projeto, também se decepcionam.
E nos quedamos perplexos.
Em nome deles, dos profissionais, pelo esforço deles, pelo trabalho deles, decidi:
“Amanhã os leiautes vão assim. Melhorem aqui e ali, fechem a agência, eu vou indo revisar a carta de defesa técnica de nossas ideias para o cliente. Amanhã, despachamos.”
No outro dia, me contaram que viraram mais uma noite em retoques.
Mais pizzas.
Mais Coca-Cola…
Invariavelmente mornas (essas tele-entregas…)
Sinceramente, não vi tanta melhora.
Mas o cliente viu.
E vibrou.
E aprovou.
E elogiou.
E as embalagens foram sendo produzidas e tudo se encaixando e o trabalho foi comemorado com a equipe com um grande churrasco e com interessantes bônus financeiros.
E talvez tenha sido a primeira, mas certamente não foi a última vez que percebi que um bom time, criativo, unido, pegador, comprometido, encara desafios inimagináveis e vence a tudo e a todos.
Principalmente os ratos (de todos os tamanhos, de todos os caráteres e de todas as feições) que teimosamente tentam nos atrapalhar atacando sem piedade – nem caráter – nossos porões.

Essa – e muitas outras histórias – está no livro Fazendo História(s) que marcou os 40 anos da e21. Se você quiser baixar o livro em PDF, clique aqui.